Encontro-me num estado de desleixo sem precedentes.- Anteontem andei todo o santo dia com uma mancha de café na camisola e nem liguei. Pior, fui a casa almoçar e voltei a sair sem me lembrar sequer de trocar de roupa. No dia anterior tive preguiça de passar a ferro umas calças, mas usei-as na mesma (há calças de ganga engelhadas que são fashion, as minhas não) - foram desenrugando ao longo do dia e ficaram um mimo.
- Ontem, belo dia enevoado com previsão de chuva, saio de casa (onde está um calor infernal) sem olhar antes pela janela, de sapatinho aberto (a pavonear, sem pudor, o belo do joanete do tamanho de Júpiter) e sem guarda-chuva. Pior, quando já estou no hospital há sei lá quantas horas, quando já passei pelos quartos todos da enfermaria e já vi todos os médicos, sento-me e olho para baixo... os meus pés, todos riscados e escritos a caneta azul. Foi a forma que arranjei, na noite anterior à uma da manhã, sentada na cama a estudar Anatomia (última cadeira do curso ainda por fazer), para decorar os tendões todos do pé: escrevê-los na pele. Sendo que o duche da manhã é tomado ainda de olhos fechados, sem as lentes postas e à pressa... deu nisto.
Mas não me fico por aqui, o desleixo vai mais além horizontes.
- O meu cabelo não vê amaciador há sei lá quanto tempo, portanto anda num estado que varia entre uma esfregona velha e o ninho de melros lá de casa. Só me falta deixar crescer um tufo nos sovacos, pôr uma t-shirt de cavas, e o quadro é perfeito. Há quem repare, mas é para o lado que durmo melhor.
- Dentro de duas semanas é o meu rasganço (se entretanto tiver feito Anatomia, claro) e, enquanto as minhas colegas vão aparecer todas sexy com soutiens push-up e corpetes à mulher da vida (não, não arranjo um convite aos meninos perversos), eu vou ser uma bola de trapos. Os meus coelhos vão estar orgulhosamente à vista de 50 pessoas, porque aqui a menina não põe os pés no ginásio, sendo a razão pura moleza. O que são os coelhos? Eu digo. Os coelhos são aquelas almofadinhas que se ganham de um lado e outro da cintura quando estamos a perder a forma física. Não chegam a ser um pneu, mas têm potencial para isso. Eu e o meu irmão travamos há muito uma batalha rija contra os coelhos. Depois de uma almoçarada de fim de semana, os coelhos dizem: "Aaaah!! Estamos consoladinhos!.." e quando vamos fazer exercícios dirigidos aos coelhos (tipo inclinar o tronco para cada lado, com a cintura fixa), os coelhos dizem "Ai!!" de um lado e "Ai!!" do outro. Claro que isto gera um certo equilíbrio, e os coelhos não crescem mas também não nos livramos deles.
- Hoje dou por mim a almoçar sozinha na cantina, coisa que me aterrorizava há uns anos atrás. Não era capaz, fazia muita mossa na reputação. Claro que, nessa altura, eu não entrava numa cantina sem conhecer uns 15 a 20 marmanjos; neste momento, entro (como de boca aberta, pego nos ossos com as mãos e palito os dentes, se quiser - não o faço, mas podia) e saio sem avistar uma cara familiar.
E isto porquê? Não sei o que se passa, mas suponho que é fartanço. Numa cidade de estudantes, em que os novos estão sempre a chegar e os velhos a partir, a média de idades da maioria dos sítios que frequento (tirando o hospital) é de 20 aninhos. Logo, eu já faço parte da quota dos cotas. Ir à discoteca é entrar num infantário e ser a educadora de infância. Estou deslocada. É cruel viver em Coimbra depois dos 25. Como ninguém olha duas vezes para uma cota, acabamos por nos habituar a não nos sentirmos observados. E o desleixo instala-se. Está a chegar a um estado crítico que me preocupa.
Acho que quem mais se assombra pela nostalgia de sair de Coimbra é quem não a viveu. Sei que aproveitei muito, ri muito, festejei muito (bebi muito), namorei muito, experimentei muito, aprontei muito, estudei muito (pouco), fiz tudo o que podia ter feito nesta cidade mágica. Mas essa fase da minha vida está a passar, é preciso algo novo. Posso depois voltar... de certeza que vou voltar... e as saudades vão ser mais que muitas... mas agora, agorinha mesmo, estou farta. E não vejo a hora de sair daqui.